terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Historieta de horror





Abriu a porta e os seus olhos me viram imediatamente. Deus, como aquele olhar insano me fazia bem. Estranhamente, me dava a sensação que tudo ficaria bem. Cabeça baixa e os olhos me encarando por baixo do cabelo que pendia pra frente. Quando eu os vi, meus temores foram embora. Tudo ficaria bem.

-Onde ela tá?
-Foi embora.
-Pra onde?
-Não me disse. Eu fiz bolo, você quer?

Entrou em casa e foi ao quarto dela. Como havia dito, não estava. Voltou e bateu na mesa com uma força que eu não podia imaginar existir em seu corpo tão delgado.


-Quando é que ela volta?
-Eu não sou secretário dela. Não pedi pra marcar na agenda.

Outra batida na mesa. Eu nunca havia falado daquela forma com ele. Ele nunca me gritara antes. Gritaria agora.

-O que você fez com ela?

Aquela sensação de tranqüilidade tinha ido embora por completo. Passaram-se o quê? Um minuto? Um e meio? Não conseguia falar nada.

-Me fala o que você fez com ela. Me fala logo, porra.

Começo a chorar. É desespero o que sinto. Ela estava certa.

-Ela disse que você ia me deixar. Que iria embora com ela. Eu não quero que você vá embora. Não... não vá... eu amo você. Você... eu sei... as coisas vão melhorar, ela foi embora agora... somos só nós agora...
-Onde é que ela tá? Anda, fala.
-Eu a matei. Ela veio pra perto de mim. Disse que você não me amava e eu sabia que era mentira. Mas ela continuou, disse que você gostava dela, que vocês iriam embora. Me deixariam sozinho. E aquele risinho zombeteiro. Nunca mais ela vai mostrar aquele sorrisinho pra ninguém.

As palavras saíam uma após a outra de maneira apressada. Uma sucessão tão rápida quanto rápida foi a maneira como as coisas aconteceram. Ele botou a mão sobre os meus lábios pra que eu me calasse. Respirei.

-Mais devagar agora.
-Eu a segurei pelo cabelo e bati a cabeça na mesa. Ela caiu e eu fiquei em cima dela. Senti vontade de sexo. Arranquei a roupa enquanto ainda estava tonta e comecei a penetrá-la. Ela começou a se debater, não queria me deixar terminar. Botei as mãos em volta do pescoço dela. Disse que ela teria prazer como você nunca tinha dado. Apertava mais e ela diminuía a resistência. Eu diminuía a pressão sobre o pescoço e aumentava o ritmo do quadril contra o dela. Bati com a cabeça dela no chão umas duas ou três vezes. Quando acabei, deixei que o peso do meu corpo ficasse sobre o dela. Ela tinha uma lágrima no olho direito. Eu não queria. Mas não podia deixar você ir com ela. Como é que eu ficaria?

Chorava compulsivamente. Ele me segurou pelo cabelo e levantou minha cabeça. Me forçava a olhar-lhe nos olhos. Aproximou seus lábios aos meus e me deu o mais intenso beijo que senti até hoje.

-Eu não vou lhe deixar nunca. Eu amo você. Você é a coisa mais incrível que já me aconteceu na vida. Onde é que está o corpo? Precisamos levar pra algum lugar onde não o encontrem.

Levantou, mas eu o puxei para mim. Abracei-lhe forte, com urgência, como se agora fôssemos, definitivamente, um.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Uma (muito) curta narrativa

Já havia caminhado até a metade da ponte. Tinha uns 60 e tantos anos e não aguentava mais viver. Tinha se tornado desinteressante. Parou. De lá, mirava o Brasil à sua direita. A casa que o desprezava. Não queria mais pensar. Se jogou.

Teria ficado muito satisfeito se a curta narrativa de sua morte terminasse aí.
Não terminou. Um navio que pesquisava sei-lá-o-quê no rio passou em baixo da ponte exatamente quando deveria atingir a água. Estava olhando o rio, desequilibrou, algo assim, foi o que disse. Mas não conseguiu conviver com o fracasso olhando para si todo o tempo. Eliminou as chances de dar errado. Pegou um revólver, trouxe até a têmpora esquerda (apesar de destro) e atirou.

Na próxima vez, lhe darei, palavra de escritor, a morte que queria.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Estudo sobre a natureza humana.

... e ainda tem aqueles para quem ser canalha é como um dom, uma dádiva natural. Pra mim, não. Eu tenho que me esforçar. Algumas vezes, alcanço um certo êxito.

sábado, 5 de setembro de 2009

Love Story.

Você me ama?
Claro.
Me ama muito?
Pode parar...
O quê?
Eu sei onde você vai chegar. E já tou avisando que pode parar.
Sabe nada.
Você vai me pedir em casamento. E estou dizendo que não faça isso.
Você fica julgando as pessoas, tá vendo? Antecipando o que eu vou falar.
...
Ok. E qual o problema em te pedir em casamento?
Meu amor, você sabe o que eu penso sobre isso.
Não te entendo. A gente acaba de chegar da festa de casamento da sua prima. Você diz que foi tudo lindo. Por que a gente não pode ter o mesmo?
Porque eu não acredito nisso. Você sabe muito bem.
Você disse que ela ia ser muito feliz.
E você queria que eu dissesse o quê, Marco? Parabéns, prima. Você vai ser relativamente feliz pelos próximos 3 anos, quando vai chegar uma estagiária nova na empresa, ele vai começar a comer ela e você vai ficar mal pra caralho. É isso que tu queria que eu dissesse?
Vânia... já tem 4 anos que a gente tá junto e eu nunca comi estagiária nenhuma na empresa.
Eu não disse isso, meu bem.
Não. Mas tá dizendo que se a gente casar vai acontecer.
Não disse isso também. Eu só acho que ela pode ser feliz no casamento dela. Mas casamento não dá pra mim.
E pra mim, Vânia? Já pensou que pode dar pra mim?
Já. E não posso querer que você encare as coisas de modo diferente por minha causa.
Eu quero me casar.
Baby, eu não quero. Se essa é a única maneira de continuar numa relação pra você, você vai ter que ir embora.
É isso mesmo que você quer?
...

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Will

Quando eu morrer, não me enterrem. Queimem meu corpo. Levem minhas cinzas por todas as partes. Joguem-nas ao vento. Joguem-nas ao mar. Façam-nas chegar em Buenos Aires. Mar del Sur, aos pés da Virgencita. Não condenem à prisão este corpo que tanto se priva de movimento.

sábado, 22 de agosto de 2009

Pô... eu queria te pedir desculpas. Sabe o que é? Eu ainda não em acostumei a ver você com ele. É estranho. Já faz tempo... sei lá... dezembro, acho. Eu poderia nunca mais voltar. Encontrar aquela companhia de teatro, lembra?, e ficar lá. Você brincava com isso. E esqueceu o cigarro dentro do carro. Eu vi e não achei que fossem seus. Hoje, sabendo o que viria pela frente, não teria avisado de qualquer maneira. Os teria guardado comigo. Agora, o carinho disfarçado em soquinhos, o tesão, a violência, o sexo, o piercing no nariz (quem te deu a idéia de colocá-lo?)... tudo... pô... é tudo dele. Cê me entende? Nem precisa. O problema é que você era a relação perfeita. Não tínhamos uma relação propriamente? Ok. Quase perfeita. But... I choose no face to look at, I just happen to be here, and that's ok. Isso não impede que meus olhos go looking for flying saucers in the sky. Acho que é por isso que ainda não me acostumei. Ainda vejo flying saucers onde não há nada. C'est la vie. Os cães ladram e a caravana passa.

Passemos bem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

What's up, doc?


Como você está? Mal, respondo sem olhar para o médico. Então, sua médica sugeriu uma licença de quinze dias. Como você começou a se sentir assim? Não sei, ainda sem o olhar. Veja bem, as doenças do psiquismo se manifestam por algumas razões. Ninguém está bom em um momento e, no outro, passa para o outro lado. Levanto a vista pela primeira vez. Mordisco a cenoura que seguro na mão direita e com a esquerda acaricio a orelha de coelho de pelúcia que prendi à testa. O que o senhor espera que eu diga? "What's up, doc?". Salto sobre a mesa e me aproximo da cara sebenta. Coloco meus olhos bem próximos às lentes engorduradas dos seus óculos. De perto, doc, ninguém é normal. Se levarmos em conta que eu não saí do meu lugar, quando o senhor passou para o outro lado, doc? Caminho lentamente de volta até à cadeira onde estava sentado. Novo salto e estou onde, aparentemente, sempre estive. Ofereço-lhe um pedaço da minha cenoura. Ele não quer. Perde o respeito que eu ainda lhe nutria.

Está aqui a sua licença. Coloque o seu sono em dia.

Colocarei, doc... colocarei.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Esqueci de dizer que o post abaixo é dedicado para as três pessoas para quem eu quero dedicá-lo.

Uma história de borboletas

Caio Fernando Abreu.

(É grande, eu sei. Mas é lindo. Façam-se o favor de ler! F.)

André enlouqueceu ontem à tarde. Devo dizer que também acho um pouco arrogante de minha parte dizer isso assim - enlouqueceu -, como se estivesse perfeitamente seguro não só da minha sanidade mas também da capacidade de julgar a sanidade alheia. Como dizer então? Talvez: André começou a comportar-se de maneira estranha, por exemplo? ou : André estava um tanto desorganizado; ou ainda: André parecia muito necessitado de repouso. Seja como for, depois de algum tempo, e aos poucos, tão levemente que apenas ontem à tarde resolvi tomar essa providência, André - desculpem a minha audácia ou arrogância ou empáfia ou como queiram chamá-la, enfim: André enlouqueceu completamente. Pensei em levá-lo para uma clínica, lembrava vagamente de ter visto no cinema ou na televisão um lugar cheio de verde e pessoas muito calmas, distantes e um pouco pálidas, com o olhar fora do mundo, lendo ou recortando figurinhas, cercadas por enfermeiras simpáticas, prestativas. Achei que André seria feliz lá. E devo dizer ainda que gostaria de vê-lo feliz, apesar de tudo o que me fez sofrer nos últimos tempos. Mas bastou uma olhada no talão de cheques para concluir que não seria possível. Então optei pelo hospício. Sei, parece um pouco duro dizer isso assim, desta maneira tão seca: então-optei-pelo-hospício. As palavras são muito traiçoeiras. Para dizer a verdade, não optei propriamente. Apenas:

1º) eu tinha pouquíssimo dinheiro e André menos ainda, isto é, nada, pois deixara de trabalhar desde que as borboletas nasceram em seus cabelos;
2º) uma clínica custa dinheiro e um hospício é de graça.

Além disso, esses lugares como aquele que vi no cinema ou na televisão ficam muito retirados - na Suíça, acho -, e eu não poderia visitá-lo com tanta freqüência como gostaria. O hospício fica aqui perto. Então, depois desses esclarecimentos, repito: optei pelo hospício. André não opôs resistência nenhuma. Às vezes chego a pensar que ele sempre soube que, de uma forma ou outra, fatalmente acabaria assim. Portanto, coloquei-o num táxi, depois desembarcamos, atravessamos o pátio e, na portaria, o médico de plantão nem sequer fez muitas perguntas. Apenas nome, endereço, idade, se já tinha estado lá antes essas coisas - ele não dizia nada e eu precisei ir respondendo, como se o louco fosse eu e não ele. Ah: nem por um minuto o médico duvidou da minha palavra. Pensei até que, se André não estivesse realmente louco e eu dissesse que sim, bastaria isso para que ele ficasse por lá durante muito tempo. Mas a cara dele não enganava ninguém, sem se mover, sem dizer nada, aqueles olhos parados, o cabelo todo em desordem. Quando dois enfermeiros iam levá-lo para dentro eu quis dizer alguma coisa, mas não consegui. Ele ficou ali na minha frente, me olhando. Não me olhando propriamente, havia muito tempo que não olhava mais para nada, seus olhos pareciam voltados para dentro, ou então era como se transpassassem as pessoas ou objetos para ver, lá no fundo deles, uma coisa que nem eles próprios sabiam de si mesmos. Eu me sentia mal com esse olhar, porque era um olhar muito... muito sábio, para ser franco. Completamente insano, mas extremamente sábio. E não é nada agradável ter em cima de você, o tempo todo, na sua própria casa, um olhar desses, assim trans-in-lúcido. Mas de repente seus olhos pareceram piscar, mas não devem ter piscado - devo esclarecer que, para mim, piscar é uma espécie de vírgula que os olhos fazem quando querem mudar de assunto. Sem piscar, então, os olhos dele piscaram por um momento e voltaram daquele mundo para onde André havia se mudado sem deixar endereço. E me olharam os olhos dele. Não para uma coisa minha que nem eu mesmo via, através de mim, mas para mim mesmo fisicamente, quero dizer: para este par de órgãos gelatinosos situados entre a testa e o nariz, meus olhos, para ser mais objetivo. André olhou bem nos meus olhos, como havia muito não fazia, e fiquei surpreso e tive vontade de dizer ao médico de plantão que era tudo um engano, que André estava muito bem, pois se até me olhava nos olhos como se me visse, pois se recuperara aquela expressão atenta e quase amiga do André que eu conhecia e que morava comigo, como se me compreendesse e tivesse qualquer coisa assim como que uma vontade de que tudo desse certo para mim, sem nenhuma mágoa de que eu o tivesse levado para lá. Como se me perdoasse, porque a culpa não era minha, que estava lúcido, nem tampouco dele, que enlouquecera. Quis levá-lo de volta comigo para casa, despi-lo e lambê-lo como fazia antigamente, mas havia aquele monte de papéis assinados e cheios de x nos quadradinhos onde estava escrito solteiro, masculino, branco, coisas assim, os enfermeiros esperando ali do lado, já meio impacientes . tudo isso me passou pela cabeça enquanto o olhar de André pousava sobre mim e sua voz dizia: * - Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Então vim embora. Os enfermeiros seguraram seus braços e o levaram para dentro. Havia alguns outros loucos espiando pela janela. Eram feios, sujos, alguns desdentados, as roupas listradinhas, encardidas, fedendo. Pensei que o médico ia colocar a mão no meu ombro para depois dizer coragem, meu velho, como tenho visto no cinema. Mas ele não fez nada disso. Baixou a cabeça sobre o monte de papéis como se eu não estivesse mais ali, dei meia volta sem dizer nada do que eu queria dizer, que cuidassem bem dele, não o deixassem subir no telhado, recortar figurinhas de papel o dia inteiro, ou retirar borboletas do meio dos cabelos como costumava fazer. Atravessei devagar o pátio cheio de loucos tristes, hesitei no portão de ferro, depois resolvi voltar a pé para casa. Era de tardezinha, estava horrível na rua, com todos aqueles automóveis, aquelas pessoas desvairadas, as calçadas cheias de merda e lixo, eu me sentia mal e muito culpado. Quis conversar com alguém, mas me afastara tanto de todos depois que André enlouquecera, e aquele olhar dele estava me rasgando por dentro, eu tinha a impressão de que o meu próprio olhar tinha se tornado como o dele, e de repente já não era mais uma impressão. Quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos brancos e sujos. Quando as transpassava, via o que tinha sido antes delas, e o que tinha sido antes delas era uma coisa sem cor nem forma, eu podia deixar meus olhos descansarem lá porque eles não se preocupavam em dar nome ou cor ou jeito a nenhuma coisa, era um branco liso e calmo. Mas esse branco liso e calmo me assustava e, quando tentava voltar atrás, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se soubesse que eu ousara.

(*) Tao Te-King: Lao Tse.

Mas alguma coisa em mim era mais forte que eu, e não conseguia evitar de ver e sentir atrás e além dos sujos bichos brancos, então soube que todos eles na rua e na cidade e no país e no mundo inteiro sabiam que eu estava vendo exatamente daquela maneira, e de repente já não era mais possível fingir nem fugir nem pedir perdão ou tentar voltar ao olhar anterior . e tive certeza de que eles queriam vingança, e no momento em que tive certeza disso, comecei a caminhar mais depressa para escapar, e Deus, Deus estava do meu lado: na esquina havia um ponto de táxi, subi num, mandei tocar em frente, me joguei contra o banco, fechei os olhos, respirei fundo, enxuguei na camisa as palmas visguentas das mãos. Depois abri os olhos para observar o motorista (prudentemente, é claro). Ele me vigiava pelo espelho retrovisor. Quando percebeu que eu percebia, desviou os olhos e ligou o rádio. No rádio, uma voz disse assim: Senhoras e senhores, são seis horas da tarde. Apertem os cintos de segurança e preparem suas mentes para a decolagem. Partiremos em breve para uma longa viagem sem volta. Atenção, vamos começar a contagem regressiva: dez-nove-oito-sete-seis-cinco... Antes que dissesse quatro, soube que o motorista era um deles. Mandei-o parar, paguei e desci. Não sei como, mas estava justamente em frente à minha casa. Entrei, acendi a luz da sala, sentei no sofá. A casa quieta sem André. Mesmo com ele ali dentro, nos últimos tempos a casa era sempre quieta: permanecia em seu quarto, recortando figurinhas de papel ou encostado na parede, os olhos olhando daquele jeito, ou então em frente ao espelho, procurando as borboletas que nasciam entre seus cabelos. Primeiro remexia neles, afastava as mechas, depois localizava a borboleta, exatamente como um piolho. Num gesto delicado; apanhava-a pelas asas, entre o polegar e o indicador, e jogava-a pela janela. Essa era das azuis . costumava dizer, ou essa era das amarelas ou qualquer outra cor. Em seguida saía para o telhado e ficava repetindo uma porção de coisas que eu não entendia. De vez em quando aparecia uma borboleta negra. Então tinha violentas crises, assustava-se, chorava, quebrava coisas, acusava-me. Foi na última borboleta negra que resolvi levá-lo para o lugar verde, e mais tarde, para o hospício mesmo. Ele quebrou todos os móveis do quarto, depois tentou morder-me, dizendo que a culpa era minha, que era eu quem colocava as borboletas negras em seus cabelos, enquanto dormia. Não era verdade. Enquanto dormia, eu às vezes me aproximava para observá-lo. Gostava de vê-lo assim, esquecido, os pêlos claros do peito subindo e descendo sobre o coração. Era quase como o André que eu conhecera antes, aquele que mordia meu pescoço com fúria nas noites suadas de antigamente. Uma vez cheguei a passar os dedos nos seus cabelos. Ele despertou bruscamente e me olhou horrorizado, segurou meu pulso com força e disse que agora eu não poderia fingir que não era eu, que tinha me surpreendido no momento exato da traição. Era assim, havia muito tempo, eu estava fatigado e não compreendia mais. Mas agora a casa estava sem André. Fui até o banheiro atulhado de roupas sujas, a torneira pingando, a cozinha com a pia transbordando pratos e panelas de muitas semanas, a janela de cortinas empoeiradas e o cheiro adocicado do lixo pelos cantos, depois resolvi tomar coragem e ir até o quarto dele. André não estava lá, claro. Apenas as revistas espalhadas pelo chão, a tesoura, as figurinhas entre os cacos dos móveis quebrados. Apanhei a tesoura e comecei a recortar algumas figurinhas. Inventava histórias enquanto recortava, dava-lhes profissões, passados, presentes, futuros era mais difícil, mas dava-lhes também dores e alguns sonhos. Foi então que senti qualquer coisa como uma comichão entre os cabelos. Aproximei-me do espelho, procurei. Era uma borboleta. Das azuis, verifiquei com alegria. Segurei-a entre o polegar e o indicador e soltei-a pela janela. Esvoaçou por alguns segundos, numa hesitação perfeitamente natural, já que nunca antes em sua vida estivera sobre um telhado. Quando percebi isso, subi na janela e alcancei as telhas para aconselhá-la: - É assim mesmo . eu disse. . O mundo fora de minha cabeça tem janelas, telhados, nuvens e aqueles bichos brancos lá embaixo. Sobre eles, não se detenha demasiado, pois correrá o risco de transpassá-los com o olhar ou ver neles o que eles próprios não vêem, e isso seria tão perigoso para ti quanto para mim violar sepulcros seculares, mas, sendo uma borboleta, não será muito difícil evitá-lo: bastará esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas, pois pousando correrás o risco de ser novamente envolvida pelos cabelos e reabsorvida pelos cérebros pantanosos e, se isso for inevitável, por descuido ou aventura, não deverás te torturar demasiado, de nada adiantaria, procura acalmar-te e deslizar pra dentro dos tais cérebros o mais suavemente possível, para não seres triturada pelas arestas dos pensamentos, e tudo é natural, basta não teres medos excessivos. trata-se apenas de preservar o azul das tuas asas. Pareceu tranqüilizada com meus conselhos, tomou impulso e partiu em direção ao crepúsculo. Quando me preparava para dar volta e entrar novamente no quarto, percebi que os vizinhos me observavam. Não dei importância a isso, voltei às figurinhas. E novamente começou a acontecer a mesma coisa: algo como borbulhar, o espelho, a borboleta (essa era das roxas), depois a janela, o telhado, os conselhos. E os vizinhos e as figurinhas outra vez. Assim durante muito tempo. Já não era mais de tardezinha quando apareceu a primeira borboleta negra. No mesmo momento em que meu indicador e polegar tocaram suas asinhas viscosas, meu estômago contraiu-se violentamente, gritei e quebrei o objeto mais próximo. Não sei exatamente o que, sei apenas do ruído de cacos que fez, o que me deixa supor que se tratasse de um vaso de louça ou algo assim (creio que foi nesse momento que lembrei daquele som das noites de antes: as franjas do xale na parede caído sobre as cordas do violão de André quando rolávamos da cama para o chão). Pretendia quebrar mais coisas, gritar ainda mais alto, chorar também. Se conseguisse, porque tinha nojo e nunca mais . quando ouvi um rumor de passos no corredor e diversas pessoas invadiram o quarto. Acho que meu primeiro olhar para elas foi aquele que tive antigamente, cheguei a reconhecer alguns dos vizinhos que nos observavam sempre, o homem do bar da esquina, o jardineiro da casa em frente, o motorista do táxi, o síndico do edifício ao lado, a puta do chalé branco. Mas em seguida tudo se alargou e não consegui evitar de vê-las daqueles outros jeitos, embora não quisesse, e meu jeito de evitar isso era fechar os olhos, mas quando fechava os olhos ficava olhando pra dentro do meu próprio cérebro . e só encontrava nele uma infinidade de borboletas negras agitando nervosamente as asinhas pegajosas, atropelando-se para brotar logo entre os cabelos. Lutei por algum tempo. Tinha alguma esperança, embora fossem muitas mãos a segurar-me. Ao amanhecer do dia de hoje fui dominado. Chamaram um táxi e trouxeram-me para cá. Antes de entrar no táxi tentei sugerir, quem sabe aquele lugar de muito verde, pessoas amáveis e prestativas, todas distantes, um tanto pálidas, alguns lendo livros, outros cortando figurinhas. Mas eu sabia que eles não admitiriam: quem havia visto o que eu via não merecia perdão. Além disso, eu tinha desaprendido completamente a sua linguagem, a linguagem que também tive antes, e, embora com algum esforço conseguisse talvez recuperá-la, não valia a pena, era tão mentirosa, tão cheia de equívocos, cada palavra querendo dizer várias coisas em várias outras dimensões. Eu agora já não conseguia permanecer em apenas uma dimensão, como eles, cada palavra se alargava e invadia tantos e tantos reinos que, para não me perder, preferia ficar calado, atento apenas ao borbulhar das borboletas dentro do meu cérebro. Quando foram embora, depois de preencherem uma porção de papéis, olhei para um deles daquele mesmo jeito que André me olhara. E disse-lhe: - Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Ele pareceu entender. Vi como se perturbava e tentava dizer, sem conseguir, alguma coisa para o médico de plantão, observei que baixava os olhos sobre o monte de papéis e a maneira indecisa com que atravessava o pátio, para depois deter-se ao portão de ferro, olhando para os lados, depois se foi, a pé. Em seguida os homens trouxeram-me e enfiaram uma agulha no meu braço. Tentei reagir, mas eram muito fortes. Um deles ficou de joelhos no meu peito enquanto o outro enfiava a agulha na veia. Afundei num fundo poço acolchoado de branco. Quando acordei, André me olhava dum jeito totalmente novo. Quase como o jeito antigo, mas muito mais intenso e calmo. Como se agora partilhássemos o mesmo reino. André sorriu. Depois estendeu a mão direita em direção aos meus cabelos, uniu o polegar ao indicador e, gentilmente, apanhou uma borboleta. Era das verdes. Depois baixou a cabeça, eu estendi os dedos para seus cabelos e apanhei outra borboleta. Era das amarelas. Como não havia telhados próximos, esvoaçavam pelo pátio enquanto falávamos juntos aquelas mesmas coisas, eu para as borboletas dele, ele para as minhas. Ficamos assim por muito tempo até que, sem querer, apanhei uma das negras e começamos a brigar. Mordi-o muitas vezes, tirando sangue da carne, enquanto ele cravava as unhas no meu rosto. Então vieram os homens, quatro desta vez. Dois deles puseram os joelhos sobre nossos peitos, enquanto os outros dois enfiavam agulhas em nossas veias. Antes de cairmos outra vez no poço acolchoado de branco, ainda conseguimos sorrir um para o outro, estender os dedos para nossos cabelos e, com os indicadores e polegares unidos, ao mesmo tempo, com muito cuidado, apanhar cada um uma borboleta. Essa era tão vermelha que parecia sangrar.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”.

Caio Fernando Abreu, em carta ao Zézim.

domingo, 3 de maio de 2009

Para Francisco

Cena 1 - RUA MOVIMENTADA – EXT/DIA


Cristiana caminha pela calçada de uma rua movimentada. Tem uma expressão preocupada, mas, de vez em quando, dá um sorriso. Ouvem-se os barulhos do trânsito e de pessoas que passam ao lado dela.

CRISTIANA
(off)

Preciso lhe dizer, Francisco: que, quando você aprender o que é pai, vai ter que aprender o que é morte; que a morte é a única certeza da vida, embora a gente passe a vida inteira fingindo que ela não existe; que às vezes a vida inteira pode durar apenas 38 anos; que o mais importante é ter vivido 38 anos muito bem vividos.

Entra em uma farmácia

Cena 2 – FARMÁCIA – INT/DIA

Cristiana dirige-se a um atendente no balcão. Enquanto fala com o atendente e enquanto aguarda, bate com os dedos no vidro do balcão.

CRISTIANA

Oi, você pode me dar um teste de gravidez, por favor?

O atendente sai de cena e volta com o teste e o entrega a Cristiana.

CRISTIANA

Obrigada.

Cena 3 – RUA MOVIMENTADA – EXT/DIA

Cristiana caminha pela mesma rua da primeira cena, na direção contrária. Ouvem-se os barulhos do trânsito e de pessoas que passam ao lado

CRISTIANA
(off)

Preciso lhe dizer, Francisco: que a vida não é sempre alegre ou triste: existe alegria na tristeza, tristeza na alegria.

Cena 4 – CASA DE CRISTIANA – INT/DIA

Cristiana segura o teste de gravidez enquanto espera impaciente. Olha o relógio de pulso. Balança o teste no ar e para de repente.

CRISTIANA

Ai, não pode fazer isso.

O teste vai ficando azul e Cristiana não consegue se conter de felicidade. Começa a gritar e pular. Pega o telefone e o joga em cima do sofá pouco depois. Chora, emocionada e ainda sorrindo. Os sons da casa continuam sendo ouvidos enquanto Cristiana fala em off.

CRISTIANA
(off)

Preciso lhe dizer, Francisco: que quando o teste de gravidez deu positivo, antes de parar pra pensar, eu sorri; que depois de parar pra pensar eu continuei sorrindo; que eu continuo sorrindo até hoje; que você me fez querer brincar de novo.

Cena 4 – TELA PRETA

Não há nenhum ruído. Somente se ouve a voz de Cristiana.

CRISTIANA
(off)

Preciso lhe dizer, Francisco: que você fez o seu pai voltar a ter planos; que ele tinha adiado as férias para quando você nascesse; que eu não poderia ter escolhido alguém melhor com quem ter um filho – e ele me dizia a mesma coisa; que eu sempre tive medo de o seu pai morrer; que é horrível ver acontecer justamente aquilo que a gente teme.

Ouve-se um choro de um bebê com cerca de 6 meses e a tela fica branca.

CRISTIANA
(off)

Preciso lhe dizer, Francisco: que você salvou a minha vida.



Para Francisco é uma das coisas mais lindas que li nos últimos tempo. Uma mãe que, movida pela urgência de apresentar um pai ao seu filho, antes que as suas histórias fiquem perdidas na distância. Cristiana Guerra diz ao filho que ele deve ler as história que ela escreveu como quem assiste a um filme. E, em todos os momentos, enquanto a lia, eu via um filme. Uma história bela e contada de maneira muito sutil, sem querer lembrar a todo momento que surgiu de uma tragédia. Para Francisco começou blog (www.parafrancisco.blogspot.com) e virou livro. Por que não atravessaria a fronteira para o cinema?

quinta-feira, 5 de março de 2009

Mensagem à Arquidiocese de Olinda e Recife

Eu sou um ninguém. E, ainda assim, certas coisas me deixam indignados. Em algumas, eu me calo. Por me sentir impotente, por acomodação, por medo. Por uma infinidade de razões. Quando o nome de um Deus é usado para justificar barbaridades, eu gostaria de ficar menos calado. E, hoje, mesmo não sendo parte do espírito desse blog, eu não ficarei. Esse post é um tributo a todos aqueles que sofrem em suas religiões. Quem ensina que Deus é amor e misericórdia, não deveria abrir a boca para recriminar ou descriminar. Mesmo acreditando que nunca, nos anos em que estive na Igreja, recriminei ou descriminei, peço desculpas a todos os que, porventura, venham a agir assim por causa de palavras ou gestos ou atos meus, nesse passado. É muito pouco. Mas não gosto nem de lembrar que essa Instituição a que eu tanto amei e a quem dei tanto de mim, faça tanto mal a pessoas que só querem viver.

[b]Mensagem enviada à Pastoral da Comunicação da Arquidiocese de Olinda e Recife[/b]

Infelizmente, não sei para quem enviar essa mensagem. 
Infelizmente, não sei se as pessoas que deveriam, lerão essa mensagem. Escrevo para a PASCOM porque, como responsável pela comunicação na arquidiocese, vocês devem ler e, talvez, responder.

Fiquei chocado com o alarde feito pela Arquidiocese de Olinda e Recife com relação ao caso de uma criança que precisou se submeter a uma prática abortiva para garantir a segurança de sua própria vida. O pior é que a Arquidiocese trata a criança e seus pais como se fossem criminosos, esquecendo a brutal realidade a que foi submetida essa família.

As atitudes da Arquidiocese são extremamente incoerentes com vários elementos que deveriam defender. Não foi Jesus quem disse que se deve dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César? Por que a Igreja tentaria impedir que o aborto fosse realizado, se ele estava previsto no que reza a legislação vigente no Brasil? Não seria preciso aprová-lo. Ao contrário, o Sr. Arcebispo poderia falar contra em todas as suas cartas pastorais, em todas as reuniões do clero, em todas as suas homilias. Mas recorrer ao Ministério Público para impedir que ele acontecesse deveria ser algo a não passar, nem de longe, pelas cabeças dessa arquidiocese. A Igreja não pode pensar que pode resolver o que todos devem fazer. Ela deve falar sim, orientar. E deixar que nós, seres humanos, ápice da criação divina e dotados de livre arbítrio, decidíssimos seguir suas orientações ou não.

Se vocês estiverem certos, os que resolverem não seguir os preceitos da Igreja serão condenados ao inferno. A eternidade já não é castigo suficiente para que a Igreja queira condená-los aqui na terra também?

A arquidiocese de Olinda e Recife se prepara para celebrar o centenário de nascimento de D. Hélder, um santo. A frase dele que estampa a página inicial desse site deveria inspira-los um pouco mais. "Os homens gastam-se tanto em palavras que não conseguem entender o silêncio de Deus". Façam como D. Hélder, que tanto se preocupou com dos milhares de "Jesus" na pele dos irmãos que sofrem.

Façam chegar ao Sr. Arcebispo o pedido para que ele não suje a cadeira arquiepiscopal onde sentou o santo Hélder Câmara. Deixem essa criança e a sua família curarem o seu sofrimento em paz!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Subiu as escadas lentamente e isso não era usual. Uma sensação de que algo não estava bem e a vontade de parar o tempo. Menos de um minuto depois, ele entenderia que o sentimento era exatamente esse: o tempo poderia parar e viveria, indefinidamente, nesse estado de "o que virá depois?". Subiu o último batente e foi até a porta. A chave demorou mais para entrar na fechadura do que era costume. Girou. Duas voltas.

Uma lágrima lhe escorria e banhava a face.

Entrou e estranhou o silêncio que havia. Onde estavam os passos que ouviu, aparentemente, desde sempre? Não há o menor rastro de movimentos tão recentes. Sumiram com os seus discos que não estão mais nas prateleiras.

Na mesinha de centro, uma carta:

"Poderia ter sido você!
Mas não foi.
Paciência.
Da sua"

Encostou as costas na parede e se deixou cair. A lágrima havia se convertido em um choro desesperado.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Uma (muito) curta narrativa.

Já havia caminhado até a metade da ponte. Tinha uns 60 e tantos anos e não aguentava mais viver. Tinha se tornado desinteressante. Parou. De lá, mirava o Brasil à sua direita. A casa que o desprezava. Não queria mais pensar. Se jogou.

Teria ficado muito satisfeito se a curta narrativa de sua morte terminasse aí.
Não terminou. Um navio que pesquisava sei-lá-o-quê no rio passou em baixo da ponte exatamente quando deveria atingir a água. Estava olhando o rio, desequilibrou, algo assim, foi o que disse. Mas não conseguiu conviver com o fracasso olhando para si todo o tempo. Eliminou as chances de dar errado. Pegou um revólver, trouxe até a têmpora esquerda (apesar de destro) e atirou.

Na próxima vez, lhe darei, palavra de escritor, a morte que queria.